Goreth Bezerra, no sepultamento da filha Camila (Foto: Carolina Esmeraldo/G1)
Modelos cearenses são levadas por agências para trabalhar no exterior com visto de turista e sem garantias trabalhistas. A denúncia foi confirmada pelo Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado (Sated). Uma modelo afirmou ao G1 ter pago U$ 10 mil do próprio bolso em despesas hospitalares. Outra disse ter devolvido à agência US$ 7.896 de despesas com alimentação e transporte anteriormente pagas pela agência.
A modelo cearense Camila Bezerra, encontrada morta na China em 1º de janeiro, trabalhava no país estrangeiro com visto de turista e contrato verbal, de acordo com Igor Bezerra, irmão da modelo. Com visto de turista, ela e outras modelos cearenses são obrigadas a devolver à agência contratante todo o valor referente a gastos durante o período de trabalho, além de arcar com a passagem aérea.
Goreth Bezerra, mãe de Camila, afirmou no sepultamento da filha que em nenhum momento a agência de modelos entrou em contato com a família para fornecer explicações. Diante da falta de cuidados, a mãe alertou sobre o perigo de confiar em empresas assim. "Prestem atenção às suas filhas lá fora'', disse. "Os modelos não precisam ir para fora, se matar de trabalhar. Aqui [no Brasil] tem um pólo", afirmou a mãe.
Uma modelo de Fortaleza, que não quer ser identificada, afirma ter pago US$ 10 mil em despesas hospitalares após sofrer uma infecção urinária durante uma viagem a trabalho para a China. A jovem conta ter permanecido no país entre junho a novembro de 2011. Poucos dias antes de terminar o contrato de trabalho, ela se sentiu mal. “Pedi para ir ao hospital, disse que não estava bem. Aí a moça da agência disse que era melhor eu não ir para o hospital, que ia perder trabalho e me deu um remedinho”, disse ela.
Camila Bezerra trabalhava há quatro meses na China (Foto: Família/Arquivo Pessoal)
Ela teve de ser internada, passou três dias no hospital e a família arcou com todas as despesas. E não foi o único gasto da modelo. A modelo conta que, enquanto esteve na China, recebia uma quantia semanal para pagar transporte e alimentação. “Quando a gente volta, tudo isso é descontado no cachê. Então, fica 50% para a agência e 50% para mim, mas essas despesas foram descontadas na minha parte. Eu também paguei pelo seguro saúde, eu mesma procurei”, diz a modelo, que pagou ainda R$ 3 mil pela passagem aérea para a China.
Também entre junho e novembro de 2011, Camila Bezerra realizava a segunda viagem a trabalho para a China sob contrato de uma agência brasileira. Assim como a colega que não quis se identificar, Camila teve de devolver o valor referente a todas as despesas da viagem para a agência, conforme informações do irmão dela, Igor Bezerra. Ele explicou ainda que, na terceira viagem, Camila não teve contrato assinado no Brasil ou na China. “Ela fez um acordo porque ela estava com visto de turista e poderia ter complicações legais”, conta Igor.
“Essa situação com essas meninas aconteceu porque elas aceitaram trabalhar com visto de turista. Nesses casos, os contratos não passam pelo Ministério do Trabalho e nem pelo sindicato”, diz o presidente Oscar Roney. De acordo com ele, muitas modelos aceitam essas condições por sonhar em se tornar grandes nomes da moda, porque os trabalhos internacionais ajudam a aumentar o cachê ou simplesmente por falta de orientação.
Jane já trabalhou em Singapura, Tailândia, Coréia do Sul e China. Modelo sempre exige contratos previamente assinados. (Foto: Jane Aquino/Arquivo Pessoal)
A estilista Jane Aquino, de 24 anos, relata que trabalha como modelo há três anos e afirma ter aceitado o mesmo acordo de trabalho. “Eu também tive de devolver tudo, foram U$ 7.896, até o [dinheiro] da passagem aérea”, disse. Ela viajou com contrato assinado e conta que a rotina na China era “pesada”. Como pagam por hora de trabalho, tinha sempre de fazer o trabalho muito rápido. “Eles não pensam muito no emocional, só no trabalho. Fazíamos às vezes 11 castings por dia, saíamos de manhã e voltávamos à noite, muitas vezes, eles não queriam parar para comer”, disse.
Antes de trabalhar como modelo, Jane cursou faculdade de estilismo. "O trabalho como modelo aceitei para conhecer outros países e o mercado da moda. Mas sei que é difícil, principalmente aqui [ no Ceará]", destaca a jovem. Segundo o especialista em Direito Trabalhista e Sindical, Tiago Pinheiro, as agências que permitem que jovens modelos viajem com visto de turista estão “ludibriando” as modelos . “É totalmente fraudulenta a postura da empresa, ela tem de ser denunciada ao MTE e cabe ação criminal”, disse o advogado.
“Ao trabalharem no exterior, elas são submetidas às leis trabalhistas do país vigente [conforme súmula 207, do Tribunal Superior do Trabalho - TST]”, explica Pinheiro. Sem o visto de trabalho, a situação irregular no país em questão pode ocasionar transtornos. Além disso, ao realizar um contrato sem orientar as profissionais neste sentido e não oferecer auxílios, como seguro saúde, as agências tentam se eximir das próprias responsabilidades. “Elas podem entrar com uma ação de indenização contra as agências por danos moral e material”, afirma.
Sindicato oferece palestras mensais sobre direitos e deveres na profissão de modelo e manequim
(Foto: Oscar Roney/Arquivo Pessoal)
Profissão regularizada
Segundo o presidente do Sated (CE), Oscar Roney, a profissão de modelo e manequim é regularizada no Brasil por meio da Lei 6533 de 1988, ou seja, toda modelo e manequim, com Registro Profissional, tem de ser contratada com todos os direitos trabalhistas garantidos, além de receber dentro do prazo contratual. Em caso de viagem ao exterior, o sindicato sempre atua exigindo o visto de trabalho e que todas as despesas sejam pagas pela agência contratante.
No caso das três modelos citadas nesta reportagem, elas não sabiam das garantias trabalhistas do visto de trabalho e, desde o início, acreditavam se tratar de um acordo “normal”. Ainda conforme Roney, o trâmite para conseguir o visto para trabalhar no exterior é mais burocrático, por isso muitas agências ignoram. O percentual médio cobrado pelas agências que atuam de forma regular e com a documentação fica em torno de 20%, mas segundo ele, a profissional não terá problemas com despesas.
Gilson Tenório, diretor do departamento de moda do Sated, atuou durante 20 anos como modelo e realizou diversas campanhas no exterior. Segundo ele, a escolha da agência é importante, pois é ela quem vai garantir os direitos dos profissionais e orientá-los. Mas se tem boas referências não há motivos de preocupação, “tem que ter cuidado é com quem você se mistura lá fora. Tem que ter cautela”, afirma.
Aos 46 anos, Tenório conta que parou de trabalhar como modelo há 10 anos, mas que o trabalho compensou. “Pra mim compensou, agora, eu sempre tive uma cabeça centrada no que eu queria. Esta é uma profissão muito difícil, glamour tem muito, mas tem de ter cautela para não deixar subir à cabeça”, destaca.
Dificuldades no mercado cearense
Segundo o presidente do Sated (CE), Oscar Roney, há ainda um outro motivo que fazem os modelos cearenses buscarem o mercado internacional: o mercado restrito no Ceará que, apesar de estar em pleno crescimento, ainda tem muito a melhorar. De acordo com o sindicalista, por ser mais barato ou para ajudar a amiga que deseja ser modelo, muitas pessoas que precisam de campanhas no Ceará ainda preferem não contratar profissionais qualificados.
“Já tivemos casos onde garotos e garotas dividiam o mesmo camarim. Os books [portfólio fotográfico] eram feitos de forma caseira. Casos com adolescentes em fotos sensuais, o Estatuto da Criança e do Adolescente condena esse tipo de procedimento, isso é caso de Polícia Federal”, conta o presidente do Sated, Oscar Roney.
Segundo Roney, alguns pais chegam a oferecer dinheiro a agenciadores para que os filhos apareçam em campanhas publicitárias, quando deveria ser o contrário. “Poucos pais são responsáveis neste acompanhamento dos filhos”, destaca. Entre crianças, adolescentes e profissionais já adultos, o Sated disse ter cadastro de 400 profissionais regularizados, ou seja, com Registro Profissional (RP) e sindicalizados no Ceará. Entretanto, sabe que o número de pessoas atuando na área é bem maior.
Em crescimento
Segundo o Sated (CE), apesar de todos os problemas, o mercado cearense está crescendo e já existem cursos que preparam modelos e manequins para o mercado de trabalho e que os encaminham para realização do Registro Profissional (RP). O sindicato ressalta ainda que algumas agências em Fortaleza procuram atuar de forma correta e exigem o RP para contratação em campanhas publicitárias.
Eventos como o Dragão Fashion também são boas referências do mercado de moda do Ceará, conforme o sindicato. “Essa referências são importantes. Não temos nem como dizer que agências são irregulares porque elas não têm endereço fixo, estão sempre mudando. Algumas delas fazem seleções em hotéis, alugam espaços e quem aluga tenta eximir da responsabilidade, não pode, é preciso sempre ter referências”, afirma o Oscar Roney, presidente do Sated.
AUTOR: G1/CE
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